Hermeto Pascoal: o Bruxo de Alagoas continua enfeitiçando

Cinco anos atrás, o multi instrumentista Hermeto Pascoal foi convidado a deixar seu autógrafo no corredor de acesso ao camarim do Sesc Pinheiros, em São Paulo. Mas preferiu registrar algo mais substancioso do que simplesmente assinar o nome: rabiscou, ali mesmo na parede, as notas que fariam parte de uma futura canção. 

Não satisfeito, chamou um instrumentista de sua banda para tocar o que ele havia acabado de escrever.

Situações como essa são comuns na carreira desse alagoano que completa 88 anos no próximo dia 22. Hermeto, cujo choro ao nascer já saiu afinado (segundo o próprio), vive em constante estado de criação – que ainda não dá sinais de exaustão. 

Esta semana, por exemplo, chegou às plataformas de streaming (e numa linda edição em vinil pela Rocinante Discos) Para Você, Ilza, o novo trabalho do compositor. Ilza é a mulher com quem foi casado por 46 anos e mãe de seus seis filhos. São treze composições de um total de 198 partituras, escritas entre 1999 e 2000.

O choro (o gênero, não as lágrimas) dá o tom do álbum. Mas de Hermeto espera-se tudo, menos obviedade. Munido apenas da partitura contendo a harmonia e a melodia, ele deu aos músicos espaço para criação e improvisação. E que músicos: André Marques (piano), Jota Pê (saxofone), Itiberê Zwarg (baixo), Ajurinã Zwarg (bateria) e Fabio Pascoal, filho de Hermeto, na percussão.

O compositor se encarrega de tocar berrante, copo com água, chaleira, cano PVC, flauta, baixo, escaleta, piano acústico e teclados.

Os momentos de criatividade são vários, como Inspirando Fundo, uma canção na qual o harmonioso diálogo inicial de piano e saxofone acaba por se transformar num exercício de improvisação. Sol de Recife, outro grande momento, traz outro diálogo bem azeitado entre o piano elétrico e a flauta, além do solo “aquático” do chamado Bruxo de Alagoas – que também marca presença na faixa-título.

Na Feira do Jabour, por seu turno, é pontuada por improvisações de escaleta, percussão e bateria. Cada faixa é enriquecida com solos dos músicos da banda de Hermeto Pascoal, que sempre privilegiou a musicalidade.

Depois que o álbum te encantar, talvez você se interesse por Quebra Tudo! A Arte Viva de Hermeto Pascoal  (Editora Kuarup; 280 páginas), a alentada biografia escrita por Vitor Nuzzi que acaba de sair.

Nuzzi conta, de modo didático, a trajetória do músico que nasceu em Olho D’Água, um dos muitos povoados de Lagoa da Canoa. Nuzzi fez mais de 50 entrevistas para explicar o porquê do respeito que Hermeto goza entre os músicos do Brasil e do exterior – entre eles o trompetista Miles Davis (1926-1991), que inclusive se apropriou indevidamente (tradução: meteu a mão) das composições Igrejinha e Nem um Talvez no álbum Live Evil, de 1971. 

Detalhista e sempre dando o contexto histórico ideal, o autor fala do início da carreira do Bruxo desde o momento que trabalhou nas rádios Tamandaré e Jornal do Commercio, no Recife, migrando depois para o Rio de Janeiro e em seguida para São Paulo. 

Hermeto participou do Som Quatro e Sambrasa Trio até criar o Quarteto Novo, uma das lendas da música instrumental brasileira – além dele, faziam parte o guitarrista Heraldo do Monte, o baterista e percussionista Airto Moreira e Théo de Barros no baixo e no violão. No final dos anos 1960, partiu para uma celebrada carreira internacional. O resto é história, contada de modo delicioso por Nuzzi, também autor de uma biografia do compositor Geraldo Vandré.

E se o álbum e a biografia não forem suficientes, há ainda a mostra Ars Sonora – Hermeto Pascoal, em exibição no Sesc Bom Retiro (São Paulo) até 24 de novembro.

São imagens e ilustrações sobre partituras, roupas e objetos pessoais do compositor, reunidas pelo curador Adolfo Montejo. Entre as raridades, estão o Calendário do Som, obra em que Hermeto compôs, de 1996 a 1997, uma música para cada dia do ano. 

Na (infelizmente) única vez em que estive com Hermeto, experimentei uma sensação semelhante à de quem viveu o episódio do Sesc Pinheiros: ele rabiscou freneticamente um pano de prato enquanto respondia às minhas perguntas. 

No final, meu deu o pano/partitura de presente (que hoje pertence à coleção do meu filho). Em Hermeto, a música não nasce; transborda. Sua curiosidade, que na infância o levou às matas para escutar o som da natureza, transcendeu gêneros e estilos. 

E, generoso, sempre estende sua experiência aos músicos que o acompanham, dando-lhes espaço para a criação e a improvisação. Hermeto é um exemplo vivo do poder salvador da música.

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