Linguagem de programação brasileira criada para Petrobras é febre mundial

DANIELA ARCANJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na tela, uma avó de longos cabelos grisalhos, shorts jeans e andador recebe as duas netas em casa. É uma senhora ranzinza e pouco convencional, que dança É o Tchan na sala, dirige um trailer e leva as crianças para a balada. O vídeo, recheado de efeitos sonoros que lembram programas de televisão vespertinos, tem mais de 1,4 milhão de visualizações no YouTube.

A peça foi feita em uma plataforma de jogos online chamada Roblox, um fenômeno de entretenimento e de mercado. Em 2021, protagonizou uma das maiores estreias na bolsa do ano, quando foi avaliada em US$ 45 bilhões (R$ 225,6 bilhões). Os jogos da empresa fundada por um canadense e um americano são especialmente famosos entre crianças e, de alguma forma, se cruzam com a Petrobras e a PUC-Rio.

Parte da plataforma é feita em Lua, linguagem de programação de maior êxito desenvolvida fora do norte global. Ela foi criada no instituto de computação gráfica Tecgraf, da universidade carioca, pelos pesquisadores Roberto Ierusalimschy, Waldemar Celes e Luiz Henrique de Figueiredo. Sua primeira versão é de 1993.

Na época, eles desenvolviam um programa para a Petrobras traçar perfis de poços de petróleo, o que foi bem-sucedido. “Uma das aplicações foi usada por mais de dez anos”, relembra Roberto. Parte do sucesso está relacionada a uma característica: ser de fácil compreensão ao usuário final.

“A ideia é que as pessoas possam resolver sozinhas os seus problemas e não precisem contatar os programadores, pedir a resolução e esperar duas semanas pela resposta”, explica o pesquisador.

Em uma comparação, é como se Lua estivesse mais próxima do usuário, enquanto a C, por exemplo, complexa linguagem criada em 1972, estivesse mais próxima do hardware. Mesmo quando colocada ao lado da linguagem Python, conhecida pela simplicidade, Lua se destaca. A brasileira sustenta 21 palavras-chave -aquelas reservadas para formar os comandos no código-, enquanto Python tem 33.

Essas características limitam a sua atuação, mas a tornam a alternativa ideal para quem quer autonomia, objetivo dos pesquisadores. Até hoje, há produtos feitos com a Lua para a Petrobras, mas não só para ela.

Angry Birds, jogo de pássaros contra porcos que foi febre nos celulares no início da década passada, também usa Lua, assim como o famoso jogo de estratégia World of Warcraft. Até mesmo a Nasa já a utilizou.

“Ser leve, portátil e de fácil integração com outras linguagens era desde o início a nossa intenção. Agora, que isso seria exatamente o que o pessoal de jogos precisava foi mirar em uma coisa e acertar em outra. Eles nos descobriram”, diz Roberto.

Roblox é um dos exemplos mais famosos atualmente. Segundo dados do balanço da empresa do final do ano passado, foram 45,5 milhões de usuários ativos por dia em 2021 -um aumento de 40% em relação a 2020. Eles passaram 41,4 bilhões de horas na plataforma, o que resultou em uma receita de quase US$ 1,9 bilhão (R$ 9,5 bilhões).

Nicolly Martins Ferreira, 12, é responsável por algumas dessas horas. É dela e de suas primas a autoria do vídeo com mais de um milhão de visualizações descrito no início do texto.

Os jogos do Roblox foram os primeiros mais elaborados com que ela teve contato -antes, passava o tempo com o Pou, bichinho virtual atualizado para a era da internet.

Ainda assim, era pouco complexo para o seu pai. “Quando ela começou a jogar Roblox, eu até brincava: ‘Nick, pelo amor de Deus, se você quiser jogar no meu PlayStation 3 ali, você pode jogar'”, diz Leonardo em uma chamada de vídeo ao lado da filha. “Eu achava um joguinho muito estranho, quadradinho.”

Ele se refere aos desenhos do jogo, que podem ser chamados de rudimentares quando comparados com os realistas gráficos dos atuais games. As árvores são quadradas e, para entrar em um carro, por exemplo, as portas não são abertas -o avatar simplesmente passa pelo que seria a lataria, como um fantasma.

Nicolly, ou Nick, como consta no seu canal no YouTube de 460 mil inscritos, não se importa. “Não pesa tanto e dá para jogar no celular”, diz ela, sentada em uma cadeira gamer rosa e vestindo um fone de ouvido da mesma cor, ornado com orelhas de gatinho.

Para ela, o jogo do momento na plataforma é o Brookhaven, que simula a vida de um personagem e é parecido com o The Sims. “Tem de trabalhar, tomar banho, pagar conta”, explica ela. “É como se fosse a vida real, se você não trabalha, você não tem dinheiro.”

Nele é possível tirar fotos, guardar itens em uma mochila, jogar em um tablet e dirigir, por exemplo. Também dá para fazer coisas fantásticas, como estourar bombas sem destruir nada e criar uma piscina em segundos, como ela e suas duas primas fizeram no vídeo.

Cada uma das três interpretava e controlava uma personagem enquanto a tela era gravada, com direito a variações no tom de voz (mais infantil para crianças e mais madura para a avó). O jogo é uma atualização das brincadeiras analógicas com bonecos.

A plataforma foi finalizada em Lua para dar liberdade aos usuários que quiserem criar os seus próprios jogos ou manipular os existentes.
“Tem muitas pessoas que usam para fazer uma coisa voar, por exemplo”, diz Nicolly. Por enquanto, ela não se aventura nesse universo, mas aprender a Lua está em seus planos para aperfeiçoar a brincadeira.

“O Roblox ensina as crianças a programar”, diz Waldemar, um dos criadores da linguagem. Quem entendeu isso foi a startup indiana Byju’s Future School, que chegou ao Brasil no meio do ano passado. Ela ensina crianças e adolescentes de 6 a 15 anos a programar com a plataforma de games.

“É muito bom saber que crianças de 10, 11 anos aprendem a programar em Lua. É naquele universo do jogo deles, mas elas aprendem a essência da programação”, diz ele.

Além de tornar a linguagem palatável para crianças e iniciantes, a simplicidade da Lua é um trunfo para este mundo em que há pequenos computadores em nossas cortinas, pulsos e geladeiras.
“A gente brinca, mas é real. Ela roda dentro de forno de micro-ondas, TVs, impressoras, teclados. Existem exemplos comerciais de todos esses produtos”, diz Roberto.

A Volvo Cars, por exemplo, usou a linguagem durante anos em seu computador de bordo, motivo de orgulho aos criadores. “Não é pesquisa por pesquisa, é pesquisa transformada em um produto tecnológico mundialmente usado”, diz Luiz Henrique.

Na internet das coisas, ou iOT, nome dado à tendência de interconexão de objetos cotidianos, a Lua tem competidores -o programador Vinicius Zein, por exemplo, esperava que a linguagem fosse mais rodada em sistemas de baixa capacidade. Ele é especialista em sistemas embarcados e já usou a Lua para programar em um telefone corporativo.

“Eu percebo uma segmentação muito grande nesse mercado. Se fosse para a Lua ocupar esse lugar de protagonista, acho que já deveria ter ocupado”, diz Vinicius.
O futuro, porém, pode ser ainda mais promissor.
“Hoje eu vejo Lua sendo muito mais usada em games do que em iOTs. Mas daqui a 10, 15 anos, essas crianças serão profissionais”, diz ele. “Talvez isso traga para o mercado um pool de desenvolvedores em Lua muito grande.”

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