Startup cria “AI Doctor” para reduzir mortes evitáveis. E quer escalar no Brasil

Uma healthtech fundada este ano em Stanford quer atacar a raiz de dois problemas que afetam sistemas de saúde em todo o mundo: a exaustão dos médicos e as mortes que poderiam ser evitadas com um atendimento mais eficiente.

E o Brasil está no centro dessa operação.

A Telepatia AI criou uma espécie de “AI Doctor”: um copiloto clínico – como se fosse um residente digital – que acompanha o médico durante toda a consulta.

A ferramenta redige o prontuário do atendimento automaticamente, sugere condutas baseadas em protocolos institucionais e oferece informações atualizadas da literatura médica sobre os casos dos pacientes. 

Para conseguir essas respostas, o treinamento do “AI Doctor” é feito em três etapas: primeiro, com literatura médica internacional revisada por pares, como os artigos do PubMed; depois, com as diretrizes clínicas nacionais de cada país; e, por fim, com os protocolos específicos de cada instituição de saúde onde o sistema é implantado. 

A partir daí, a AI é ajustada continuamente, aprendendo com as práticas e dados dos próprios médicos.

“Ele não alucina porque não busca informações no Reddit, no Twitter ou em outras fontes desse tipo – o AI Doctor sempre procura os dados apenas nessas três fontes,” o fundador e CEO Nicolás Abad disse ao Brazil Journal.

Dessa forma, segundo o CEO, a ferramenta ajuda a liberar os médicos das funções administrativas e melhora os atendimentos, reduzindo as mortes evitáveis.

“Entendi que o mundo precisa de ‘empregados de saúde artificiais’ que aumentem a capacidade médica e liberem o médico para o que realmente importa: cuidar das pessoas,” disse Abad.

Após criar o agente, Abad saiu dos Estados Unidos e foi validar o modelo na Colômbia, país em que passou parte de sua infância e adolescência. 

Por lá, o produto foi testado em 15 instituições e 2 mil médicos. O AI Doctor fez com que a aderência aos protocolos clínicos pelos médicos subisse de 84% para 99%, e cerca de 96% dos profissionais relataram redução da carga administrativa. O NPS, por sua vez, ficou em 9. 

A tese atraiu o A-Star – um fundo do Vale do Silício que já investiu em empresas como Palantir e SpaceX – como líder de uma rodada seed de US$ 9 milhões.

Além do fundo americano, participaram o Canary, Abstract Ventures, Picus Capital e da SV Angel.

Boa parte dos recursos será destinada à expansão da Telepatia no Brasil. Segundo Abad, já há conversas com hospitais privados, redes verticalizadas e prefeituras. A meta é alcançar 2.000 médicos no Brasil até o fim do ano e 20.000 até 2026. 

Mais do que ajudar os médicos, o potencial de melhorar a saúde no País é enorme: somente no Brasil, segundo Abad, 55% das mortes poderiam ser evitadas caso os atendimentos – especialmente os iniciais – fossem feitos de maneira mais acurada.

O modelo do negócio da Telepatia é B2B: a startup vende seus serviços diretamente para instituições de saúde, que oferecem o produto aos médicos. O CEO disse que a plataforma é interoperável com qualquer prontuário eletrônico utilizado e obedece às regras da LGPD.

A Telepatia surgiu após uma tragédia: a morte do pai de Abad, que era médico, aos 58 anos. Para Abad, uma morte evitável. 

“Meu pai morreu exausto, sobrecarregado pela burocracia médica. Quando ele se foi, eu percebi que poderia fazer algo pelas pessoas que enfrentam o mesmo tipo de falha do sistema,” disse ele.

No fim de 2022, vendo o então recém-lançado GPT 3.5, Abad percebeu que a ferramenta poderia transformar a medicina. Conversou com o seu amigo e médico Tomás Giraldo para criar uma ferramenta “de médicos para médicos”. Os dois se conheceram quando estudavam na mesma escola, em Medellín. 

“Ele me escreveu a melhor mensagem de condolências quando meu pai faleceu. Voltamos a nos aproximar quando contei a ele que estava obcecado por medicina e passamos a trocar artigos todos os dias e a desenvolver pequenos MVPs,” disse.

Uma das primeiras decisões dos dois fundadores foi o nome da empresa: Telepatia era o apelido do pai de Abad, conhecido por ter uma memória extraordinária.

Como forma de homenagear o pai, Abad tem uma meta ousada: vencer o prêmio Nobel da Medicina com a sua empresa. 

Por isso, o caminho da Telepatia passa pela oncologia – uma área em que a escassez de especialistas é crítica.

Segundo Abad, um oncologista levaria 433 dias para ler toda a literatura científica atual. 

“Nosso objetivo é criar 100 ‘internos de IA’ para cada oncologista e reduzir em 10% a mortalidade por câncer. Se fizermos isso, o Nobel deixa de ser um sonho e vira uma métrica mensurável,” disse. 

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Cymbalista: o ex-alpinista que superou a morte para vencer na vida

Deitado em uma cova, o ar começou a faltar.

Essa é uma das memórias mais profundas de Alexandre Cymbalista, então com 17 anos, sobre o episódio que mudaria sua vida. Na escuridão absoluta do Cerro Tronador, em Bariloche, ele e o amigo Adriano Petrachi foram surpreendidos por uma tempestade e tiveram que lutar contra o frio, a fome e o medo.

“A barraca começou a ser esmagada pela neve. A gente teve que sair de lá e descer a montanha, pois não dava mais pra fazer nada,” conta Alexandre a Nilton Bonder no episódio de The Business Of Life. Seguir em frente era um ato suicida – e esperar, sob a ação do frio e do vento, também.

Em terra, uma cova é um leito guardado aos mortos; em uma tempestade de gelo, ela se torna uma oportunidade de sobrevida. Foi quando Alexandre teve uma ideia: “Eu lembrei de uma das situações que alpinistas já tinham vivido, que era cavar uma cova de gelo na montanha… Então a gente fez isso, a gente passou uma tarde inteira fazendo isso.”

Ficaram molhados, tremendo, com comida para apenas um dia, mas só foram resgatados no terceiro dia. Ao encontrarem as equipes de resgate, os brasileiros descobriram que eram os últimos de uma temporada de escalada que já havia terminado.

A experiência forjou um instinto que se tornaria central em sua vida. Depois de temporadas nos Andes e na Antártida, onde serviu como alpinista da Marinha, Cymbalista trocou o gelo pelo empreendedorismo. Em 2003, fundou a Latitudes, agência de viagens de conhecimento que combina destinos remotos e a presença de especialistas, como Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé e Clóvis de Barros Filho.

Com mais de 100 países em seu passaporte, Alexandre mira novos horizontes: o próximo projeto da Latitudes pretende levar brasileiros ao espaço até 2035. De um abrigo de neve a um foguete rumo às estrelas, Cymbalista transformou a aventura em método — e provou que, na montanha e na vida, sobreviver é a maior conquista.

Também disponível no Spotify.

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No Google, funcionários impõem um limite entre o uso de AI e a privacidade

As grandes companhias estão cada vez mais incorporando ferramentas de AI para aumentar a produtividade de seus funcionários e reduzir custos. 

Mas há uma área em que a implementação dessa estratégia vai ser algo mais delicado — pelo menos se depender dos funcionários do Google. 

O Business Insider reportou hoje que a Big Tech teve que voltar atrás de uma exigência que havia imposto a seus funcionários depois da medida gerar uma revolta interna.

O Google havia dito a seus funcionários que, para serem elegíveis ao plano de saúde no ano que vem, eles teriam que permitir que uma ferramenta de AI chamada Nayya acessasse seus dados pessoais. 

A decisão não agradou os funcionários, que ficaram preocupados com o compartilhamento de seus dados pessoais e de saúde com o serviço. 

A reação foi tamanha que o Google voltou atrás, atualizando sua política interna e garantindo que os funcionários possam optar por não participar do programa da Nayya e ainda assim continuar elegíveis para o plano de saúde.

No documento inicial, o Google dizia que a Nayya fornece serviços essenciais para otimizar o uso dos benefícios do plano, “portanto os participantes do plano de saúde da Alphabet não podem se desassociar totalmente do compartilhamento de dados com terceiros.”

E intimava: “Para optar por não compartilhar dados com fornecedores de saúde daqui para frente, cancele sua inscrição nos benefícios fornecidos pela Alphabet.”

No documento atualizado, o Google mudou o tom: disse que o Nayya é “opcional”, e que quem optar por aderir ao programa terá dados como salário, gênero e número do Social Security compartilhados com a ferramenta. 

A Nayya é uma startup de AI com sede em Nova York que já recebeu investimentos de gigantes do setor de RH, como a Workday e a ADP, e de fundos como o Iconiq Capital.

A startup se propõe a dar recomendações personalizadas de benefícios de saúde com base nas informações pessoais de cada funcionário, buscando otimizar os custos das empresas com os planos de saúde. 

Segundo o Business Insider, a exigência inicial de aderir à ferramenta fez com que diversos funcionários publicassem mensagens criticando a medida em plataformas internas de comunicação.

“Por que estamos fornecendo nossos dados médicos a uma ferramenta de AI de terceiros sem a possibilidade de recusar?” dizia uma das perguntas enviadas, segundo o Business Insider.

“Este é um padrão muito obscuro. Não posso dar um consentimento significativo para que meus dados sejam compartilhados com essa empresa, e não quero consentir dessa forma,” disse outro funcionário.

“O consentimento para um recurso opcional como ‘otimização do uso de benefícios’ não é significativo se ele estiver vinculado a algo essencial como os PLANOS DE SAÚDE do Google! A palavra que você está procurando é ‘coercitivo’,” disse outro.

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Outra fraude de balanço: caso First Brands parece outra Enron

O Chapter 11 da produtora de autopeças americana First Brands — pedido às pressas no mês passado após um dos credores da empresa questionar as suas práticas de financiamento fora do balanço e apreender parte do seu caixa — caminha para se tornar mais um escândalo financeiro histórico, com ramificações no mercado de crédito privado e no setor automotivo.

Em seu pedido de reestruturação, a First Brands estimou uma dívida entre US$ 10 bilhões e US$ 50 bilhões e ativos entre US$ 1 bilhão e US$ 10 bilhões, acendendo uma luz vermelha no mercado de crédito e tornando a empresa objeto de investigação do Department of Justice (DOJ).

Segundo o Financial Times, o valor real da dívida da empresa é de cerca de US$ 12 bilhões.

Agora, seguradoras como Allianz, Coface e AIG se preparam para pedidos de indenização; e bancos e hedge funds como o Jefferies, UBS e Millennium devem sofrer perdas bilionárias em suas operações com a empresa.

Outra credora, a provedora de serviços financeiros Raistone, afirma que US$ 2,3 bilhões “simplesmente sumiram” do balanço da First Brands e que será necessária uma investigação externa para solucionar o caso.

No entanto, indícios apontam que a Raistone — especializada em fornecer capital de giro a empresas por meio de soluções de trade finance e que ajudou a First Brands a se financiar com diversos credores — pode ser parte do problema, disse o FT.

Isso porque Dave Skirzenski, o fundador da Raistone, foi um dos primeiros funcionários da Greensill Capital, que colapsou em 2021 viabilizando operações do tipo.

Investidores americanos estão comparando o caso da First Brands com o escândalo protagonizado pela Enron. A empresa de energia chegou a esconder cerca de US$ 30 bilhões em dívidas em SPEs fora do balanço antes de ser exposta e colapsar em 2001.

A First Brands — que é dona de 24 marcas ligadas ao setor automotivo e foi fundada pelo misterioso empresário malaio Patrick James em 2013 — cresceu rapidamente nos últimos anos com uma estratégia agressiva de aquisições sustentada pelo mercado de crédito privado.

Assim, segundo dados de março divulgados pela própria empresa, teria acumulado uma dívida de US$ 6 bilhões.

Esse patamar elevado de endividamento não impediu o mercado de continuar emprestando para a First Brands, até que um dos credores desconfiou que o financiamento fora do balanço da empresa estava fora de controle.

A First Brands também se bancava através do factoring, um tipo de empréstimo de curto prazo lastreado por faturas não pagas dos clientes de uma empresa. (As autoridades estão investigando inclusive a venda duplicada de alguns destes recebíveis.)

Com capital jorrando em Wall Street nos últimos anos, esse nicho de crédito ganhou força. Mas, como já aconteceu também no Brasil, operações assim não são categorizadas como dívida e não aparecem de forma adequada nos balanços — um prato cheio para que as coisas saiam do controle.

Duas semanas antes do Chapter 11, os bonds da First Brands ainda eram negociados a níveis relativamente saudáveis — mostrando que o forte do mercado de crédito privado não é exatamente a due diligence e elevando os temores de que haja outras bombas semelhantes prestes a explodir.

Algumas seguradoras começaram a reduzir sua cobertura da First Brands há quase um ano, segundo o FT, após detectarem problemas de pagamento crescentes em uma das subsidiárias do grupo. 

“Enquanto tudo está funcionando, ninguém fará perguntas,” Jim Chanos, o gestor que previu o escândalo da Enron, disse ao FT. “Só quando uma empresa ou os mercados tropeçam é que as pessoas notam que o que estão fazendo não faz o menor sentido.”

Entre os players implicados, fundos administrados pela Point Bonita Capital, do Jefferies, comunicaram uma exposição de US$ 715 milhões à First Brands; enquanto o UBS indicou ter US$ 500 milhões comprometidos via sua unidade de hedge funds O’Connor.

A ação do Jefferies recua 25% desde a divulgação do escândalo.

Mas o tamanho do rombo ainda não está claro e, além de possíveis problemas no mercado de crédito, investidores monitoram repercussões no setor automotivo. 

Com as tarifas de Trump impactando o setor e obrigando cada vez mais empresas do ramo a utilizar esse tipo de financiamento, o risco de uma crise sistêmica não é descartado.

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O que é uma vida que “vale a pena ser vivida”?

“Para mim, não me interessa propriamente uma vida ‘feliz’, mas sim uma vida interessante, que valha a pena ser vivida.” — Contardo Calligaris

Sempre achei ralo e superficial quando alguém me perguntava se eu estava feliz com a minha vida. Para não me prender a obviedades, respondia de forma displicente que sim.

Mas quando a conversa ganhava um tom mais instigante e profundo, acabava recorrendo à resposta mais autêntica e honesta: havia momentos em que sim e outros em que não. E acrescentava que nunca acreditei — ou persegui — a ideia de uma “vida feliz”.

O que sempre busquei, como o Calligaris, foi uma vida interessante, que valesse a pena ser vivida. Uma vida que, ao olhar para o passado, eu pudesse dizer a mim mesmo que a vivi intensamente — que fiz tudo o que era possível realizar dentro do meu potencial e limitações. Em outras palavras, viver essa tal de “vida completa” (fulfilling life).

Essa busca é mais antiga que a própria filosofia.

Os gregos antigos se dedicaram a incontáveis reflexões sobre o tema. Para alguns, principalmente Epicuro e seus discípulos, a “boa vida” estava na vida hedonômica. Ao contrário do que muitas vezes se pensa hoje, não era viver em busca de prazeres desenfreados, mas cultivar prazeres simples e duradouros, reduzindo sofrimentos desnecessários e buscando a tranquilidade da alma.

Já Aristóteles oferecia outra resposta: para ele, a vida “feliz” estava na vida eudaimônica. Isso significava viver de acordo com a própria essência, guiado pela virtude e pelo propósito, realizando o potencial humano em sua plenitude. Ao longo da história, esse conceito atravessou séculos e foi retomado por pensadores tão distintos quanto Santo Agostinho, Kant, Jung, Maslow, Frankl, Seligman, entre outros. Tratava-se menos de buscar prazer imediato e mais de tornar-se a melhor versão de si mesmo — em harmonia com o “bem comum” e com as virtudes que sustentam a vida em sociedade.

Mais recentemente, o psicólogo Shigehiro Oishi, da Universidade de Chicago, acrescentou uma terceira perspectiva: a da vida psicologicamente rica. Ela se soma à vida hedonista (centrada no prazer) e à vida significativa (centrada no propósito), destacando o valor de uma existência marcada pela curiosidade, pela abertura intelectual e pela disposição de viver experiências diversas — mesmo quando desconfortáveis ou desafiadoras. Trata-se de reconhecer que a diversidade de experiências, com suas reviravoltas e aprendizados, pode e deve contribuir para a jornada da realização humana.

Para mim, uma “vida completa” é justamente esse mosaico de prazer, propósito e curiosidade. Aliás, não vejo esses caminhos como excludentes ou conflitantes; mesmo porque juntos, a meu ver, compõem o tecido de uma vida que merece ser vivida.

Como fundador — e também aluno — da Casa do Saber, investi muito tempo e energia para descobrir a base teórica, psicológica e filosófica do que estava vivendo e perseguindo. E, mais importante, em como aplicá-las no meu dia a dia. Agora, entrando na terceira fase da vida, lembro das palavras de Arthur Brooks: esse é o momento em que passamos naturalmente a ensinar e compartilhar.

Por isso, inicio aqui uma série de artigos em que pretendo dividir o que estudei e aprendi, na esperança de contribuir com quem queira explorar essa questão tão essencial ao ser humano.

Já ofereço aqui um disclaimer: não vou me aprofundar em questões espirituais ou esotéricas no sentido tradicional. Além de serem temas muitas vezes controversos, minha natureza é mais cartesiana, mais racional — preciso de alguma explicação científica para aceitar determinado conceito.

Não que eu não tenha tentado: participei de vários retiros espirituais, fiz peregrinações existenciais no Oriente, medito há mais de 30 anos e estudei religiões em profundidade — mesmo sem crer nelas. (Como entender a natureza humana sem estudar a fundo as religiões?)

Já procurei esse contato com o chamado “cosmo”, mas sinceramente não o encontrei; talvez por alguma limitação cognitiva ou de sensibilidade minha. Ou, quem sabe, a espiritualidade seja um tema a ser desenvolvido no meu último quartil de vida — o que deixaria a minha mãe, cristã estudiosa e dotada de muita fé, bastante feliz.

A base do que considero os pilares teóricos de uma “vida completa” foi construída a partir de diferentes referências. Começa com a individuação em Carl Gustav Jung (1875–1961), passa pela autorrealização em Abraham Maslow (1908–1970), segue pela tradição judaico-cristã e pelo Vedanta (filosofia secular hindu) — que nos ensina, por exemplo, a lidar com a ansiedade de sempre querer algo mais e a compreender a lei da causalidade.

Sigo, mais à frente, pelas reflexões de Baruch Spinoza (1632–1677) e da neurociência sobre livre-arbítrio (principalmente Robert Sapolsky e Sam Harris), e me inspiro nos inúmeros estudos e pesquisas compilados por Arthur Brooks, de Harvard, em especial aquelas que mostram como a segunda parte da vida pode ser vivida em sua plenitude, com mais propósito, sabedoria e contribuição.

Esses conceitos estão longe de serem exaustivos em relação a um tema tão vasto e fascinante. Tenho certeza de que não contemplam várias concepções que você, leitor, pode considerar essenciais — e respeito isso. Mas foram esses que mais me marcaram nessa busca de algumas décadas pelo embasamento teórico do caminho que vinha — e venho — trilhando.

Este primeiro artigo é apenas a contextualização da série que começa aqui. Nos próximos textos, pretendo detalhar cada um dos pilares apresentados e mostrar como essas ideias se conectam à prática.

Não se trata de um manual, nem de um caminho universal, mas de reflexões que talvez possam inspirar você a desenhar a sua própria jornada para uma vida que valha a pena ser vivida.

Jair Ribeiro é empresário, fundador e presidente da Casa do Saber e da Associação Parceiros da Educação. Passou o último ano em Harvard no programa Advanced Leadership Initiative, que apoia empresários a transformarem sua trajetória em projetos de impacto social.

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Endometriose: quando sentir dor não é normal

Você piscou e parece que a palavra “endometriose” foi incorporada ao vocabulário das mulheres à sua volta?

Amigas, esposa, namorada, colegas de trabalho ou irmãs têm comentado sobre as cólicas menstruais insuportáveis que as deixam insones, cansadas, irritadas, sem concentração e zero dispostas para a vida social? Não é à toa que tem se falado — e tratado — tanto do assunto. O número de diagnósticos da doença tem mesmo aumentado — em parte pelos avanços da medicina, com exames de imagem mais precisos, em parte pelo estilo de vida moderno que faz crescer o número de casos.

O adiamento da maternidade ou a decisão de não ter filhos, em nome de outros desejos de vida, tem seu papel, pois aumenta o número de ciclos menstruais ao longo da vida. O maior consumo de álcool, as altas cargas de estresse no trabalho, a alimentação recheada de produtos ultraprocessados que bagunçam os hormônios e a falta de tempo para manter o corpo em movimento — tudo isso tem se somado aos fatores genéticos que influenciam o surgimento da doença.

A endometriose, que se caracteriza por um quadro inflamatório crônico, ocorre quando há migração de células que formam a parede do útero (o endométrio) para outros órgãos, como ovários, intestino e bexiga, onde se fixam, causando fortes dores.

O ginecologista e obstetra Rubens Gonçalves Filho, cirurgião do Centro de Excelência em Cirurgia Robótica do Hospital Israelita Albert Einstein, que há 30 anos se dedica ao tratamento da endometriose, explica que, por fatores culturais, o diagnóstico muitas vezes acontece de forma tardia. “Sempre se ouviu que é normal ter dor para menstruar. Quando a mulher chega ao médico com essa queixa, a maioria já está no nível 8, 9 ou 10 na escala de dor — e aí já tem doença.”

Nesta conversa com o Brazil Journal, Rubens apresenta os principais avanços no tratamento da endometriose, com medicações específicas e cirurgias assistidas por robôs. 

A endometriose se tornou um assunto mais frequente nos últimos anos. Houve aumento na capacidade diagnóstica ou cresceu o número de casos?

Este ano marca exatamente 25 anos do início das pesquisas para o diagnóstico da endometriose por exames de imagem — ultrassom transvaginal com preparo intestinal e ressonância magnética. Antes, dependíamos de uma cirurgia, a videolaparoscopia, para identificar a doença em mulheres que há anos apresentavam dores intratáveis com medicamentos.

Os avanços nos exames facilitaram os diagnósticos, mas também houve aumento no número de casos, em função das gestações mais tardias e das mudanças de hábitos, como maior consumo de álcool, substância altamente inflamatória, e alimentação com base em produtos ultraprocessados, que contêm disruptores endócrinos, ou seja, provocam desbalanço no sistema hormonal da mulher.

Por que, com todos os avanços, o diagnóstico ainda é difícil?

Em primeiro lugar, sempre se ouviu que é normal ter dor para menstruar. Às vezes, você tem histórias de família em que a avó tinha dor incapacitante para menstruar, a mãe tirou o útero, depois de ter filhos, porque tinha muita dor para menstruar… Culturalmente, a mulher é ensinada a aguentar a dor.

Então, quando ela chega ao médico com essa queixa, a maioria já está no nível 8, 9 ou 10 na escala de dor — e aí já tem doença. Muitas vezes, ela tem um diagnóstico tardio e já não responde a medicamentos. Boa parte das mulheres que fazem cirurgia de endometriose têm uma história de 10, 15, 20 anos de dor. Além disso, estamos falando de uma medicina de alto nível e de exames de alta complexidade, com poucos radiologistas especializados, então, infelizmente, a grande maioria das mulheres brasileiras não têm acesso a diagnóstico e tratamento.

A endometriose também afeta os homens?

Afeta os homens que convivem com suas companheiras com endometriose, porque elas podem desenvolver depressão, irritabilidade, insônia… Algumas passam a evitar relações sexuais porque sentem dor e ficam sem disposição para ir a compromissos sociais… É um desafio para os casais, hetero e homossexuais.

Nos casais homossexuais, as mulheres costumam ter bastante apoio de suas companheiras. Os homens, por desconhecimento ou preconceito, podem interpretar a queixa da mulher como frescura, exagero ou vontade de chamar atenção. Mas também observo, quando eles acompanham suas parceiras na consulta, que muitas vezes colocam mais ênfase na questão da dor do que a própria paciente, deixando claro que já passou dos limites. Essa é uma forma de apoio importante — estar atento quando a mulher tende a normalizar o sofrimento, dizendo que “sempre foi assim na família dela” ou algo do tipo, e insistir na busca de um especialista.

Quais são as maiores dúvidas e angústias dos casais que te consultam?

Os casais que desejam ter filhos querem saber sobre infertilidade, o que é uma questão real, pois 50% das pacientes com endometriose não conseguem engravidar. A segunda maior preocupação é se a endometriose pode virar câncer. São casos raros, que acontecem principalmente quando a mulher adentra a menopausa com endometriose ovariana, que se apresenta na forma de cistos, especialmente cistos com mais de 6 centímetros.

Faz diferença dar atenção aos aspectos emocionais e psíquicos relacionados à doença?

Tem um dado interessante da Sociedade Americana de Pediatria que é: se o médico deixa a paciente falar por cinco minutos, sem interrompê-la, aumenta em até 80% sua capacidade diagnóstica. Só de ouvir a paciente. Esse dado vem da avaliação de pediatras que se dedicam a escutar as impressões das mães das crianças, mas serve para qualquer especialidade. No currículo da faculdade de medicina, existe a disciplina de psiquiatria e psicologia médica. Escutar faz parte do nosso trabalho. O fato de ser filho de um ginecologista e de uma psicanalista, além de ter feito análise pessoal por quase dez anos, também me ensinaram a importância de ter ouvidos. Escutar aumenta a sensibilidade do médico para o sofrimento alheio e traz conforto para a paciente.

Existe um perfil típico de mulheres com endometriose?

Mulheres que têm mãe ou irmãs com endometriose são as mais afetadas. O risco de desenvolver a doença, que é de aproximadamente 10% para as mulheres em geral, quase dobra nesses casos.

Além disso, é mais comum em mulheres que têm maior número de ciclos menstruais ao longo da vida — porque começaram a menstruar precocemente, por volta dos 9 ou 10 anos; têm ciclos menstruais mais curtos, com intervalo inferior ou igual a 21 dias; engravidaram depois dos 35 anos; ou não tiveram filhos.

Ser portadora de uma doença autoimune, como a fibromialgia, também aumenta o risco, porque exacerba processos inflamatórios no corpo da mulher.

E há ainda a influência de fatores externos. Temos a hipótese de que viver num ambiente social desfavorável, por exemplo, acarreta um estresse crônico, desde o início da vida, que interfere no metabolismo hormonal. Sedentarismo e sobrepeso também contribuem para o surgimento do quadro. A endometriose é uma doença multifatorial.

Quais os tratamentos disponíveis hoje?

Já existem medicamentos específicos que não só aliviam a dor, mas reduzem o volume e o número de focos de endometriose, freando o desenvolvimento da doença — são os anticoncepcionais da classe das progesteronas. Cerca de 50% das mulheres respondem bem ao tratamento clínico com progesteronas, analgésicos e mudanças de estilo de vida. Ou seja, ter endometriose não significa ter que fazer cirurgia, necessariamente. É muito importante a vigilância radiológica, ou seja, refazer os exames a cada seis meses para controle do quadro.

Mulheres que não podem usar hormônios por predisposição a trombose ou porque tiveram câncer de mama, por exemplo, podem ser tratadas com analgésicos, anti-inflamatórios, acupuntura, técnicas de relaxamento e meditação, que reduzem o estresse e têm poder sedativo. Existem medicamentos não-hormonais que estão sendo propostos, os antiestrogênicos, mas eles levam a sintomas de menopausa, inclusive com possibilidade de osteoporose.

Atividade física aeróbica é obrigatória para as mulheres com endometriose — caminhada, corrida, dança, natação e bicicleta, por exemplo, ajudam a regular a produção natural de estrogênio, hormônio que alimenta a doença. Dietas antiinflamatórias também podem ter efeito positivo porque ajudam a combater a inflamação crônica que ocorre no quadro de endometriose, podendo provocar outros sintomas além da dor, como fadiga, insônia e dificuldade de concentração.

Quando a cirurgia é indicada?

Em geral, nos casos que não respondem às medicações e especialmente nos quadros graves, em que a endometriose atinge camadas profundas do intestino, apêndice, bexiga, rins ou até o diafragma (músculo da respiração), comprometendo a função desses órgãos. Costumo dizer que a cirurgia não é a primeira indicação, mas pode ser a única indicação para algumas mulheres. E há ainda situações específicas, como quando a mulher quer engravidar e não está conseguindo ter relações sexuais porque sente dor — neste caso, não podemos usar anticoncepticonais para tratamento, então, a cirurgia é uma opção.

Quais foram os avanços mais recentes no tratamento cirúrgico?

A endometriose provoca uma distorção da anatomia dos órgãos pélvicos e abdominais. Em palavras leigas, ela age como uma cola que gruda órgãos que antes deslizavam entre si, e isso provoca dor. Quanto mais perto os olhos do cirurgião estão dessas lesões, maior precisão ele tem para removê-las.

A videolaparoscopia, que é uma cirurgia minimamente invasiva, começou no Brasil no início da década de 80, fazendo essa aproximação do olho do cirurgião em relação às lesões. Foi um grande avanço. E os robôs cirúrgicos, lançados no mercado americano em 1998, chegaram ao Brasil dez anos depois, trazendo acurácia ainda maior.

Esses robôs permitem ao cirurgião enxergar em 3D, com noção de profundidade, e têm câmeras muito potentes, ricas em detalhes. Além disso, possuem pinças mais delicadas, que se articulam como o punho humano e filtram tremores da mão do cirurgião, minimizando ainda mais as chances de lesões aos órgãos, durante o procedimento. O robô é 100% comandado pelo cirurgião, não toma nenhuma decisão sozinho.

A cirurgia robótica da endometriose proporciona operações mais rápidas, remoção de mais lesões, melhor recuperação da paciente e menor chance de recidiva da doença.

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Taylor Swift resgata Ofélia – porque nada é mais moderno do que um clássico

Taylor Swift, o ídolo pop da Geração X, acaba de lançar seu novo álbum, e a primeira faixa – The fate of Ophelia – bateu um recorde: mais de 30 milhões de acessos já no primeiro dia.

Se até o século passado a métrica de sucesso de um intérprete era a quantidade de discos vendidos, hoje o êxito se mede pelo número de acessos, isto é, quantas vezes a música foi ouvida no streaming.

Eu não era fã da Taylor Swift – mas virei.

Não conheço suas opiniões políticas nem sei se ela serve de bom exemplo para algo. Mas virei fã antes mesmo de ouvir suas novas composições por um motivo só: ela reverberou, para sua infinita legião de admiradores, o drama de Ofélia, personagem de Hamlet, de William Shakespeare.

Ofélia, na obra monumental do Bardo de Stratford, é a “namoradinha” de Hamlet, ou melhor, um flerte encorpado do melancólico príncipe dinamarquês. 

Deixe-me explicar melhor – exatamente o que Shakespeare deliberadamente não fez. Na peça, o autor se esforçou para garantir a interpretação extrínseca do espectador ou do leitor. Shakespeare, profundamente generoso, permitiu que tudo ficasse aberto: Hamlet, filho do rei da Dinamarca, vai estudar em Wuttemberg. Estudar o quê? Não se esclarece. Quantos anos o príncipe tem? Não se diz. Hamlet namorava Ofélia? Tampouco isso se revela. Possivelmente, tratava-se de um relacionamento proibido, pois Hamlet era nobre e Ofélia, uma plebeia, filha de Polônio, um conselheiro do rei.

Além disso, antes do casamento, naquela época, não se permitiam encontros mais íntimos. Na obra, porém, a existência inclusive de atos sexuais entre Hamlet e Ofélia fica levemente subentendida.

Quando Hamlet tem que voltar para Elsinore, na Dinamarca, por conta da repentina morte do pai, toma ciência que seu tio Cláudio se havia apoderado do trono e assumido o romance com a viúva do rei, Gertrudes, sua mãe. Tudo rápido demais. Suspeito demais. Assim começa a peça.

Hamlet, a partir daí, passa a dar sinais de loucura. Não se sabe se o príncipe ficou mesmo abilolado ou se apenas fingia esse estado. Mais uma dúvida que Shakespeare deixa para nós.

O pai de Ofélia, Polônio, é um sobrevivente no meio dos nobres. Oferece opiniões tolas, platitudes, diz o que se quer ouvir. Um conselheiro Acácio da Dinamarca. Usa sua filha como um joguete, pois lhe interessa que ela se enlace com o príncipe, o que, para ele, representaria uma ascensão social.

Desconfiando que o tio matou seu pai para lhe tomar a coroa e a mulher, Hamlet perde-se no torvelinho de suas conjecturas. Não sabe como reagir. Ser ou não ser. Rejeita Ofélia, humilhando-a – faz isso deliberadamente ou apenas para dar veracidade ao seu papel de insano?

Para piorar a situação de Ofélia, Hamlet, sem querer, assassina Polônio, o pai da moça. O homem que ela ama a torna órfã – a peça, como se vê, também poderia se chamar “A tragédia de Ofélia”.

A jovem fica perdida. O juízo a abandona – nisso, Shakespeare não dá espaço para outra interpretação. Em seguida, Ofélia aparece morta, afogada num arroio. Embora não se diga nada diretamente sobre suicídio, sabe-se que ninguém se afoga num rio raso… Ofélia, em desespero, havia tirado a própria vida.

Desde então – mais especificamente, 1601, quando a peça foi, nessa versão, encenada pela primeira vez – Ofélia simboliza a mulher colocada na posição de joguete, a mulher desprezada e engolida num jogo político, a mulher que, depois de perder o que ama, se mata. Uma imagem forte, capaz de abrir espaço para debate e reflexão.

A referência às obras clássicas do passado – e as muitas imagens e símbolos que estas carregam – não serve apenas como recurso artístico; tem um papel mais importante. É fundamental o reforço da cultura.

Virgílio citou Homero. Camões citou Virgílio. Fernando Pessoa e Manuel Bandeira citaram Camões. Gerações se encontram nessas menções cruzadas. Quando nos remetemos aos clássicos, eles se encontram conosco. É como o abismo de Nietzsche, que nos encara se olharmos para ele.

Machado de Assis fez constantes remissões a Shakespeare. Dom Casmurro, por exemplo, conta que Bentinho, no auge da crise de ciúme, vai ao teatro assistir justamente Otelo, obra na qual o protagonista fica dominado pelo medo de sua mulher ter um caso com outro. O “demônio dos olhos verdes”, o ciúme, toma controle tanto de Bentinho como de Otelo.

Elvis Presley, a quintessência do ícone pop, citou Shakespeare indiretamente num de seus clássicos: Are ou lonesome tonight, de 1960. No meio da música, Elvis passa a declamar um poema: “You know, someone said that ‘The world is a stage’”… Esse “someone” é, como se sabe, Shakespeare, autor da frase “o mundo é um palco”. A referência do rei do rock, embora divertida, não invadia profundamente a obra de Shakespeare.

Em The fate of Ophelia, contudo, Taylor Swift se vale dessa poderosa imagem para se expor corajosamente. Sua canção menciona as dificuldades emocionais que passou até encontrar seu atual namorado, um famoso jogador de futebol americano.

A letra, após registrar que ela teria se “afogado em melancolia” caso não tivesse engatado no romance com seu parceiro, informa que o amor a salvou do “destino de Ofélia”.

Na canção, Taylor Swift trata da triste personagem de Shakespeare, obrigando quem quiser entender a referência a visitar Hamlet. Torço para que, dos 30 milhões de pessoas que acessaram a música no dia de sua estreia, muitos tenham curiosidade de absorver a poderosa imagem.

Falar de Ofélia significa falar de nossos sentimentos e de como temos cuidado deles. Afinal, a continuação da nossa história como uma estrada ininterrupta, a própria ideia de civilização, depende desse culto aos grandes monumentos artísticos do passado.

Ponto para Taylor Swift. Nada mais moderno do que falar do clássico. 

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados e membro da Academia Brasileira de Letras.

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Ser ou não ser contemporâneo? ‘O Mercador de Veneza’ responde à dúvida

Poucos debates fazem menos sentido no teatro que a preocupação com o spoiler. Se fosse importante, o público não lotaria plateias para aplaudir clássicos, como Hamlet, Macbeth ou Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), frequentemente revisitados.

Nestes casos, o interessante é a proposta do diretor e a recriação dos personagens por determinados intérpretes. Mesmo sendo menos popular, O Mercador de Veneza, peça escrita entre 1596 e 1598, ganhou uma encenação de Daniela Stirbulov protagonizada por Dan Stulbach capaz de justificar o valor das releituras.

“Como um artista relevante, Shakespeare não está morto e devemos mexer em sua obra sim,” argumenta Daniela, de 38 anos, que fez mestrado em direção teatral em Londres e assina a primeira montagem em cima do bardo inglês.

Em cartaz no Tucarena, em São Paulo, depois de passar desde abril por Santo André, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba e Guarulhos, o espetáculo movimenta bilheterias – uma prorrogação da temporada será anunciada em breve – e gera opiniões controversas de fãs do dramaturgo, da comunidade judaica e até do público LGBTQIAP+.

“Eu não acredito no meio-termo e, como encenadora, minha ideia era mesmo chutar a porta, ressaltando questões que, com o olhar de hoje, são claras no texto,” diz Daniela.

A trama original, ambientada na transição do mercantilismo para o capitalismo, assume ares de contemporaneidade nos anos de 1990, a última década antes da revolução tecnológica. Os personagens vivem o começo da globalização, fazem referências às instabilidades da bolsa de valores, e o estranhamento continua com a trilha sonora que reúne a popstar Madonna e o cantor espanhol Alejandro Sanz.

Alguns espectadores se incomodam ao ver o agiota judeu Shylock alçado ao protagonismo e dominado por atitudes dúbias, em tempos de guerra entre Hamas e Israel. Na interpretação de Stulbach, ora Shylock é um revanchista impiedoso, ora um justiceiro contra os desmandos capitalistas e, obrigado a repensar atitudes, se mantém radicalmente fiel a seus princípios.  

O conflito se instaura quando o comerciante Antônio (defendido por Cesar Baccan) levanta o empréstimo de 3 mil coroas – o equivalente a 9 milhões de reais, segundo ressaltam em cena – com Shylock para pagá-lo em três meses. Ele quer ajudar o amigo Bassânio (Marcelo Ullmann), objeto de sua tensão sexual, e, como garantia, oferece uma libra de própria carne que seria cortada perto do coração pelo financiador.

Os negócios de Antônio despencam e, diante da inadimplência, Shylock se apresenta irredutível na cobrança da dívida. “A crueldade me foi ensinada e vou praticar,” declara Shylock. O financiador quer se vingar das humilhações sofridas ao longo da vida e, se a maioria cristã o trata como inferior, é hora de castigar seus detratores, que segundo ele, são exploradores e desumanos. “A tarefa mais dura deste mundo é tentar amolecer o coração de um judeu,” rebate Antônio, acovardado.  

O Mercador de Veneza é um vespeiro, e talvez por isso seja pouco encenada. No Brasil, ela foi vista com os atores Pedro Paulo Rangel (1948-2022) e Luiz Damasceno no papel de Shylock, respectivamente em 1996 e 2004, mesmo ano em que foi levada às telas pelo diretor Michael Redford, tendo Al Pacino na pele do agiota.

O crítico estadunidense Harold Bloom (1930-2019), especialista em Shakespeare, chegou a defini-la como uma peça antissemita. Doutor em História Social pela USP e pesquisador associado ao Shakespeare Institute (UK), Ricardo Cardoso derruba essa tese e defende que a dramaturgia sublinha que nada parece o que realmente é.

“Os cristãos venezianos, tão orgulhosos de sua fé, não praticam o amor ao próximo,” escreve Cardoso no programa do espetáculo. “Shakespeare, atento ao seu tempo, em que as pessoas eram obrigadas a conversões religiosas, ensina que a pior condenação ao ser humano não seria a perda do dinheiro, mas a da identidade.”

Daniela reforça a importância do discurso como opção teatral e cita montagens europeias em que Shylock foi representado por um palestino e por uma mulher. Por isso, tudo começou a ser definido a partir da escolha de Stulbach para encabeçar o elenco, que, além do protagonista, conta com outros dois atores judeus – Marcelo Ullmann e Thiago Sak – entre os doze componentes.

“O nosso Shylock ser um judeu e mostrar esse judeu isolado por todos reflete o momento que o mundo atravessa,” diz a diretora.

Stulbach, de 56 anos, acredita que sua ascendência é fundamental para um novo entendimento da peça, tanto dele como por parte do público. “O personagem não fala do fato de ser judeu, mas sobre o preconceito que sofre como minoria e, assim, abordamos racismo, homofobia, machismo e xenofobia.”

Neste sentido, Shakespeare continua vivo mais de quatro séculos depois, e sua obra cumpre a função de retratar os conflitos da sociedade.

Em 2025, O Mercador de Veneza ainda poderia ser encenado com os atores usando figurinos de golas e saias armadas. Mas como teatro é identificação, Shylock, Antônio e Bassânio têm sua comunicação ampliada porque o espectador se enxerga no visual, no comportamento e no jeito de falar dos personagens.

A encenação de Daniela Stirbulov cumpre este objetivo plenamente, assumindo a importância de ressignificar Shakespeare no debate contemporâneo.

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‘AFIM’ mostra por que é fácil ficar a fim de Zé Ibarra

Zé Ibarra entrou no radar do grande público ao participar de A Última Sessão de Música, a derradeira turnê de Milton Nascimento.

Ele era o vocalista de registro agudo da banda, e tinha um momento solo espetacular: cabia a Ibarra interpretar San Vicente, de Milton e Fernando Brant, que faz parte de Clube da Esquina, o álbum recentemente apontado como o melhor trabalho da música brasileira em todos os tempos.

Mas Ibarra está longe de ser um principiante. O artista de 28 anos tem mais de uma década de carreira, participou de dois grupos icônicos da cena independente e é responsável por um dos melhores discos deste ano.

AFIM, que chegou em junho às plataformas de streaming, é um trabalho diversificado, com influências do pop sofisticado de Marina Lima ao tropicalismo de Caetano Veloso, da soul music carioca (a chamada Black Rio) a canções que denotam um lado experimental.

Uma combinação de bom tom de música popular de origem alternativa.

Mas afinal, quem é esse sujeito? José Vítor Ibarra Ramos nasceu no Rio, filho de uma produtora de eventos e um fotógrafo. Despertou para a música aos dois anos e aos quatro ganhou de presente o clássico Elis & Tom, que reuniu os talentos de Elis Regina e Tom Jobim. Mais tarde, foi aplicado por álbuns de jazz e MPB pelos pais e estudou piano clássico (Chopin e Debussy estão entre seus autores eruditos prediletos).

Em 2014, Ibarra formou o Dônica, que também trazia em sua formação Tom Veloso (violão) e Lucas Nunes (guitarra e atual diretor musical da banda de Caetano Veloso). O grupo, que tinha como inspiração o rock progressivo e as canções do Clube da Esquina (leia-se o disco/movimento criado por Milton Nascimento e Lô Borges, que trazia ainda Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso, além dos letristas Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos) soltou Continuidade dos Parques em 2015 pela Sony Music.

Até que, em 2019, durante as preparações para o trabalho seguinte do conjunto, Ibarra recebeu o convite de participar da turnê Clube da Esquina, do próprio Milton. “Foi tudo meio seco e eu fiquei: ‘Como assim? Toco teclado, piano, violão, mas não considero que toco bem assim’,” ele disse na época.

O tributo ao Clube da Esquina rendeu elogios de artistas de alta patente como Ney Matogrosso e Gal Costa (que o convidou para um dueto na nova versão de Meu Bem, Meu Mal, que ela gravou em 2020) e conexões com nomes da nova geração – entre eles a cantora Duda Beat, com que gravou uma versão acústica de Bédi Beat, e o conjunto mineiro Daparte, que contou com os vocais de Ibarra na canção Pescador.

O período da pandemia rendeu ainda outro projeto ambicioso: o Bala Desejo, formado pelo vocalista e violonista ao lado de Dora Morelenbaum, Julia Mestre e Lucas Nunes. Criado em meio às lives promovidas pela cantora Teresa Cristina, o quarteto emulava a sonoridade dos anos 1970, em especial a dos Doces Bárbaros – o combo formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Sim Sim Sim, que eles lançaram em 2022, ganhou o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum Pop em Português.

A carreira solo de Zé Ibarra é constituída por dois discos: Marquês, 253, de 2023 (o título faz alusão ao endereço do prédio em que ele ficou confinado durante a pandemia), e agora, AFIM.

Se a estreia era marcada pelos arranjos franciscanos – voz e violão e olhe lá – AFIM é um trabalho no qual se faz acompanhar por uma banda (um dream team da nova MPB autóctone, formado, entre outros, pelo baixista Alberto Continentino, o guitarrista Lucas Nunes, o baterista Thomas Harres e o trio de metais Copacabana Horns), mas que mantém uma característica de sua estreia. Ibarra evita a ansiedade de querer se mostrar como compositor e abre espaço para as criações de terceiros.

“Eu achava que minha carreira estaria acabada se fosse cantar músicas de outros compositores,” ele disse ao Brazil Journal. “Me descobri como intérprete ao participar da turnê do Milton.”

AFIM traz duas criações de Sophia Chablau (Hexagrama 28 e Segredo, rock acelerado que Zé transformou em pop à la Marina Lima), uma do ex-parceiro de banda Tom Veloso (Morena, que traz ecos do Clube da Esquina), Maria Beraldo (Da Menor Importância, de tom experimental) e Ítallo França (a delicada Retrato de Maria Lúcia).

Transe e Infinito em Nós são da lavra do próprio artista, e Essa Confusão traz uma parceria dele com Dora Morelenbaum, sua companheira de Bala Desejo.

AFIM é um retrato da melhor MPB que tem sido produzida no País. 

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