Taylor Swift, o ídolo pop da Geração X, acaba de lançar seu novo álbum, e a primeira faixa – The fate of Ophelia – bateu um recorde: mais de 30 milhões de acessos já no primeiro dia.
Se até o século passado a métrica de sucesso de um intérprete era a quantidade de discos vendidos, hoje o êxito se mede pelo número de acessos, isto é, quantas vezes a música foi ouvida no streaming.
Eu não era fã da Taylor Swift – mas virei.
Não conheço suas opiniões políticas nem sei se ela serve de bom exemplo para algo. Mas virei fã antes mesmo de ouvir suas novas composições por um motivo só: ela reverberou, para sua infinita legião de admiradores, o drama de Ofélia, personagem de Hamlet, de William Shakespeare.
Ofélia, na obra monumental do Bardo de Stratford, é a “namoradinha” de Hamlet, ou melhor, um flerte encorpado do melancólico príncipe dinamarquês.
Deixe-me explicar melhor – exatamente o que Shakespeare deliberadamente não fez. Na peça, o autor se esforçou para garantir a interpretação extrínseca do espectador ou do leitor. Shakespeare, profundamente generoso, permitiu que tudo ficasse aberto: Hamlet, filho do rei da Dinamarca, vai estudar em Wuttemberg. Estudar o quê? Não se esclarece. Quantos anos o príncipe tem? Não se diz. Hamlet namorava Ofélia? Tampouco isso se revela. Possivelmente, tratava-se de um relacionamento proibido, pois Hamlet era nobre e Ofélia, uma plebeia, filha de Polônio, um conselheiro do rei.
Além disso, antes do casamento, naquela época, não se permitiam encontros mais íntimos. Na obra, porém, a existência inclusive de atos sexuais entre Hamlet e Ofélia fica levemente subentendida.
Quando Hamlet tem que voltar para Elsinore, na Dinamarca, por conta da repentina morte do pai, toma ciência que seu tio Cláudio se havia apoderado do trono e assumido o romance com a viúva do rei, Gertrudes, sua mãe. Tudo rápido demais. Suspeito demais. Assim começa a peça.
Hamlet, a partir daí, passa a dar sinais de loucura. Não se sabe se o príncipe ficou mesmo abilolado ou se apenas fingia esse estado. Mais uma dúvida que Shakespeare deixa para nós.
O pai de Ofélia, Polônio, é um sobrevivente no meio dos nobres. Oferece opiniões tolas, platitudes, diz o que se quer ouvir. Um conselheiro Acácio da Dinamarca. Usa sua filha como um joguete, pois lhe interessa que ela se enlace com o príncipe, o que, para ele, representaria uma ascensão social.
Desconfiando que o tio matou seu pai para lhe tomar a coroa e a mulher, Hamlet perde-se no torvelinho de suas conjecturas. Não sabe como reagir. Ser ou não ser. Rejeita Ofélia, humilhando-a – faz isso deliberadamente ou apenas para dar veracidade ao seu papel de insano?
Para piorar a situação de Ofélia, Hamlet, sem querer, assassina Polônio, o pai da moça. O homem que ela ama a torna órfã – a peça, como se vê, também poderia se chamar “A tragédia de Ofélia”.
A jovem fica perdida. O juízo a abandona – nisso, Shakespeare não dá espaço para outra interpretação. Em seguida, Ofélia aparece morta, afogada num arroio. Embora não se diga nada diretamente sobre suicídio, sabe-se que ninguém se afoga num rio raso… Ofélia, em desespero, havia tirado a própria vida.
Desde então – mais especificamente, 1601, quando a peça foi, nessa versão, encenada pela primeira vez – Ofélia simboliza a mulher colocada na posição de joguete, a mulher desprezada e engolida num jogo político, a mulher que, depois de perder o que ama, se mata. Uma imagem forte, capaz de abrir espaço para debate e reflexão.
A referência às obras clássicas do passado – e as muitas imagens e símbolos que estas carregam – não serve apenas como recurso artístico; tem um papel mais importante. É fundamental o reforço da cultura.
Virgílio citou Homero. Camões citou Virgílio. Fernando Pessoa e Manuel Bandeira citaram Camões. Gerações se encontram nessas menções cruzadas. Quando nos remetemos aos clássicos, eles se encontram conosco. É como o abismo de Nietzsche, que nos encara se olharmos para ele.
Machado de Assis fez constantes remissões a Shakespeare. Dom Casmurro, por exemplo, conta que Bentinho, no auge da crise de ciúme, vai ao teatro assistir justamente Otelo, obra na qual o protagonista fica dominado pelo medo de sua mulher ter um caso com outro. O “demônio dos olhos verdes”, o ciúme, toma controle tanto de Bentinho como de Otelo.
Elvis Presley, a quintessência do ícone pop, citou Shakespeare indiretamente num de seus clássicos: Are ou lonesome tonight, de 1960. No meio da música, Elvis passa a declamar um poema: “You know, someone said that ‘The world is a stage’”… Esse “someone” é, como se sabe, Shakespeare, autor da frase “o mundo é um palco”. A referência do rei do rock, embora divertida, não invadia profundamente a obra de Shakespeare.
Em The fate of Ophelia, contudo, Taylor Swift se vale dessa poderosa imagem para se expor corajosamente. Sua canção menciona as dificuldades emocionais que passou até encontrar seu atual namorado, um famoso jogador de futebol americano.
A letra, após registrar que ela teria se “afogado em melancolia” caso não tivesse engatado no romance com seu parceiro, informa que o amor a salvou do “destino de Ofélia”.
Na canção, Taylor Swift trata da triste personagem de Shakespeare, obrigando quem quiser entender a referência a visitar Hamlet. Torço para que, dos 30 milhões de pessoas que acessaram a música no dia de sua estreia, muitos tenham curiosidade de absorver a poderosa imagem.
Falar de Ofélia significa falar de nossos sentimentos e de como temos cuidado deles. Afinal, a continuação da nossa história como uma estrada ininterrupta, a própria ideia de civilização, depende desse culto aos grandes monumentos artísticos do passado.
Ponto para Taylor Swift. Nada mais moderno do que falar do clássico.
José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados e membro da Academia Brasileira de Letras.
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