Ser ou não ser contemporâneo? ‘O Mercador de Veneza’ responde à dúvida

Poucos debates fazem menos sentido no teatro que a preocupação com o spoiler. Se fosse importante, o público não lotaria plateias para aplaudir clássicos, como Hamlet, Macbeth ou Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), frequentemente revisitados.

Nestes casos, o interessante é a proposta do diretor e a recriação dos personagens por determinados intérpretes. Mesmo sendo menos popular, O Mercador de Veneza, peça escrita entre 1596 e 1598, ganhou uma encenação de Daniela Stirbulov protagonizada por Dan Stulbach capaz de justificar o valor das releituras.

“Como um artista relevante, Shakespeare não está morto e devemos mexer em sua obra sim,” argumenta Daniela, de 38 anos, que fez mestrado em direção teatral em Londres e assina a primeira montagem em cima do bardo inglês.

Em cartaz no Tucarena, em São Paulo, depois de passar desde abril por Santo André, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba e Guarulhos, o espetáculo movimenta bilheterias – uma prorrogação da temporada será anunciada em breve – e gera opiniões controversas de fãs do dramaturgo, da comunidade judaica e até do público LGBTQIAP+.

“Eu não acredito no meio-termo e, como encenadora, minha ideia era mesmo chutar a porta, ressaltando questões que, com o olhar de hoje, são claras no texto,” diz Daniela.

A trama original, ambientada na transição do mercantilismo para o capitalismo, assume ares de contemporaneidade nos anos de 1990, a última década antes da revolução tecnológica. Os personagens vivem o começo da globalização, fazem referências às instabilidades da bolsa de valores, e o estranhamento continua com a trilha sonora que reúne a popstar Madonna e o cantor espanhol Alejandro Sanz.

Alguns espectadores se incomodam ao ver o agiota judeu Shylock alçado ao protagonismo e dominado por atitudes dúbias, em tempos de guerra entre Hamas e Israel. Na interpretação de Stulbach, ora Shylock é um revanchista impiedoso, ora um justiceiro contra os desmandos capitalistas e, obrigado a repensar atitudes, se mantém radicalmente fiel a seus princípios.  

O conflito se instaura quando o comerciante Antônio (defendido por Cesar Baccan) levanta o empréstimo de 3 mil coroas – o equivalente a 9 milhões de reais, segundo ressaltam em cena – com Shylock para pagá-lo em três meses. Ele quer ajudar o amigo Bassânio (Marcelo Ullmann), objeto de sua tensão sexual, e, como garantia, oferece uma libra de própria carne que seria cortada perto do coração pelo financiador.

Os negócios de Antônio despencam e, diante da inadimplência, Shylock se apresenta irredutível na cobrança da dívida. “A crueldade me foi ensinada e vou praticar,” declara Shylock. O financiador quer se vingar das humilhações sofridas ao longo da vida e, se a maioria cristã o trata como inferior, é hora de castigar seus detratores, que segundo ele, são exploradores e desumanos. “A tarefa mais dura deste mundo é tentar amolecer o coração de um judeu,” rebate Antônio, acovardado.  

O Mercador de Veneza é um vespeiro, e talvez por isso seja pouco encenada. No Brasil, ela foi vista com os atores Pedro Paulo Rangel (1948-2022) e Luiz Damasceno no papel de Shylock, respectivamente em 1996 e 2004, mesmo ano em que foi levada às telas pelo diretor Michael Redford, tendo Al Pacino na pele do agiota.

O crítico estadunidense Harold Bloom (1930-2019), especialista em Shakespeare, chegou a defini-la como uma peça antissemita. Doutor em História Social pela USP e pesquisador associado ao Shakespeare Institute (UK), Ricardo Cardoso derruba essa tese e defende que a dramaturgia sublinha que nada parece o que realmente é.

“Os cristãos venezianos, tão orgulhosos de sua fé, não praticam o amor ao próximo,” escreve Cardoso no programa do espetáculo. “Shakespeare, atento ao seu tempo, em que as pessoas eram obrigadas a conversões religiosas, ensina que a pior condenação ao ser humano não seria a perda do dinheiro, mas a da identidade.”

Daniela reforça a importância do discurso como opção teatral e cita montagens europeias em que Shylock foi representado por um palestino e por uma mulher. Por isso, tudo começou a ser definido a partir da escolha de Stulbach para encabeçar o elenco, que, além do protagonista, conta com outros dois atores judeus – Marcelo Ullmann e Thiago Sak – entre os doze componentes.

“O nosso Shylock ser um judeu e mostrar esse judeu isolado por todos reflete o momento que o mundo atravessa,” diz a diretora.

Stulbach, de 56 anos, acredita que sua ascendência é fundamental para um novo entendimento da peça, tanto dele como por parte do público. “O personagem não fala do fato de ser judeu, mas sobre o preconceito que sofre como minoria e, assim, abordamos racismo, homofobia, machismo e xenofobia.”

Neste sentido, Shakespeare continua vivo mais de quatro séculos depois, e sua obra cumpre a função de retratar os conflitos da sociedade.

Em 2025, O Mercador de Veneza ainda poderia ser encenado com os atores usando figurinos de golas e saias armadas. Mas como teatro é identificação, Shylock, Antônio e Bassânio têm sua comunicação ampliada porque o espectador se enxerga no visual, no comportamento e no jeito de falar dos personagens.

A encenação de Daniela Stirbulov cumpre este objetivo plenamente, assumindo a importância de ressignificar Shakespeare no debate contemporâneo.

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