O mundo depois de nós: a angústia da vida sem internet

Um casal de Nova York está passando alguns dias com os dois filhos adolescentes em uma casa de praia alugada pela internet. No meio da noite, um homem e sua filha batem à porta. Ele se apresenta como o proprietário da casa e dá explicações não muito convincentes para sua aparição em horário tão inapropriado. Pede licença para passar a noite no lugar. Como compensação pelo incômodo, oferece um desconto no aluguel. 

O casal fica dividido. O marido gosta da ideia de receber de volta parte do que já pagaram. A mulher não está convencida de que os recém-chegados sejam quem dizem ser – e não faz questão de disfarçar essa desconfiança. A família de locatários é branca, enquanto o homem que se apresenta como proprietário e sua jovem filha são negros, e essa circunstância eleva ainda mais a tensão da cena. Com poucas mas bem colocadas observações, a filha sugere que a animosidade com que ela e pai foram recebidos está baseada no racismo.

O mundo depois de nós (Leave the world behind), filme da Netflix, nunca se afasta da relação desigual entre esses quatro personagens. Trata-se de um drama íntimo, que se desenvolve em boa parte dentro da casa de praia ou ao redor de sua piscina. Ao mesmo tempo, é um inusitado representante de um subgênero cinematográfico que não costuma primar pela sutileza: o filme-catástrofe.

Essa dualidade é conduzida com segurança pelo diretor Sam Esmail. Baseado no livro homônimo de Rumaan Alam (publicado no Brasil pela Intrínseca), o filme – tal como Mr. Robot, série criada por Esmail – centra-se em um ataque cibernético: internet, telefonia, televisão e rádio já estão fora do ar no momento em que G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la) entram na casa onde Clay e Amanda Sandford (Ethan Hawke e Julia Roberts) estão instalados.

Nos momentos rápidos e raros em que a transmissão de notícias por TV ou celular se restabelece, chegam fragmentos de informações sobre um ataque hacker que imobilizou o país inteiro, e cujo autor é desconhecido. Terroristas islâmicos? Um drone percorre a área despejando panfletos em árabe, mas não há certeza de nada. De tempos em tempos, ouve-se um som agudo e alto que desorienta pessoas e racha vidros. Ninguém tem pista do que isso significa.

Em uma cena impressionante na parte inicial do filme, um petroleiro desgovernado – a orientação por GPS também caiu – encalha na praia onde Clay, Amanda e seus filhos Archie (Charlie Evans), de 16 anos, e Rose (Farrah Mackenzie), de 13, estão tomando sol. No decorrer da história, sucedem-se mais dessas sequências em que este ou aquele personagem escapa do perigo no último minuto (na melhor delas, um projeto caro a Elon Musk é ironizado). Mas o filme não se ampara no susto, e sim no desconforto, na estranheza, na tensão. 

Reunidos pelo acaso e pelo apocalipse, os dois núcleos familiares encontram dificuldades para estabelecer uma cooperação mútua. Os homens até se entendem razoavelmente bem. Consultor financeiro com clientes poderosos, G.H. tem informações privilegiadas sobre a crise, que ele hesita em compartilhar. Clay, professor universitário, é muito boa praça mas não demonstra a determinação necessária para enfrentar a aparente dissolução do mundo civilizado.

As duas mulheres não se bicam. Amanda, que trabalha em publicidade, é de uma honestidade áspera e um tanto cínica, qualidades que não ajudam a desmontar a hostilidade de Ruth, jovem muito inteligente mas um tanto mimada: não se conforma de ter de dormir no porão da casa do pai, enquanto a família branca ocupa os quartos do segundo andar. 

Em um diálogo dispensável, G.H. sugere que as inconciliáveis divisões dos Estados Unidos deixam o país especialmente suscetível a ataques. Essa mensagem antipolarização só não soa ridícula porque Mahershala Ali é um tremendo ator. No geral, porém, O mundo depois de nós ousa entrar em uma zona de incerteza que não é comum nas produções para streaming. Essa é uma grande qualidade do filme, que no entanto foi mal compreendida: nas redes sociais, muitos espectadores ventilaram sua frustração com a ausência de uma resolução clara e limpa para o drama.

Em 2021, quando estava lançando Catástrofe, compêndio dos mais variados desastres e pragas já enfrentados pela humanidade – da erupção do Vesúvio à covid-19 – Niall Ferguson me concedeu uma entrevista na qual arriscou prever a natureza da próxima catástrofe global: será um ataque cibernético

“Alguém está preparado para viver offline? Ficaremos completamente paralisados sem internet. Só então saberemos o quanto a civilização hoje depende de tecnologia,” me disse o historiador escocês.  

O mundo depois de nós mergulha o espectador na desorientação que viveríamos nesse cenário. 

Talvez por isso angustie tanta gente. 

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