Uma das artistas mais importantes do Brasil, Anna Maria Maiolino acaba de ganhar uma exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no mês em que completa 80 anos.
“Psssiiiuuu” – uma retrospectiva antológica que atravessa a carreira de mais de seis décadas da artista – tem mais de 300 obras ocupando as grandes salas do prédio, e vem sendo pensada e estruturada com a artista desde 2019.
“Assim como a vida, a obra da Anna é uma espiral: vai e volta, tem ênfases e preocupações recorrentes, que vão se concatenando ao longo do tempo,” o curador Paulo Miyada disse ao Brazil Journal.
Artista e curador montaram uma grande maquete para planejar a apresentação das obras, sem seguir uma cronologia linear ou separação por linguagens e ponderando o impacto entre trabalhos realizados com um intervalo de 60 anos.
Anna Maria Maiolino nasceu em 1942 na Itália, de pai italiano e mãe equatoriana, e se mudou para a Venezuela com 12 anos. Depois de seis anos em Caracas, foi morar no Rio de Janeiro em 1960. Começou a fazer cursos de pintura e xilogravura e rapidamente se inseriu na cena cultural carioca, associando-se a nomes como Hélio Oiticica, Antônio Dias, Lygia Clark, Lygia Pape e Rubens Gerchman, com quem casou e teve dois filhos.
Em 68, Gerchman ganhou uma bolsa de estudos e o casal foi morar em Nova York com as crianças pequenas, numa época em que vários artistas latino-americanos estavam lá exilados por causa das ditaduras em seus países.
Quando um repórter foi fazer uma matéria sobre os artistas brasileiros no exílio, Gerchman reuniu Hélio Oiticica, Amilcar de Castro e Ivan Freitas para a entrevista em seu loft, no Soho. Anna cuidava das crianças e servia o café aos presentes.
Oiticica percebeu o incômodo e sugeriu, considerando que o momento não a permitia trabalhar, que ela escrevesse. Na falta de um ateliê, ela teria um caderninho no bolso para continuar a expressar seus sentimentos, criar histórias e projetos – sem interromper seu processo criativo. Oiticica estava certo: anos mais tarde, várias obras surgiram com base nos cadernos, e a escrita virou um instrumento importante para Maiolino.
Apesar de naquela época já ter participado de uma bienal e de exposições importantes no Rio com o grupo de artistas exilados, ela era vista pelos demais como estrangeira. Em seus relatos, conta que sua vida peregrina não possibilitou um estudo regular prolongado nem de artes nem de um idioma (italiano, espanhol ou português), e essas rupturas dificultaram o próprio reconhecimento de pertencer a um lugar ou um grupo.
Gerchman sempre a estimou como artista e resolveu mostrar o trabalho de Maiolino para Luis Camnitzer, um artista uruguaio que dava aula em Nova York. Camnitzer reconheceu o talento e convidou Anna para estudar no International Graphic Center, na Pratt University.
Para ter independência financeira, ela trabalhava de dia em um estúdio como designer de tecidos (enquanto as crianças estavam na escola) e à noite estudava. Mas os múltiplos papéis e o próprio casamento a esgotaram, o que motivou seu retorno ao Brasil, já separada, trazendo os filhos. Vida e obra evidenciam que a liberdade é um valor inegociável para Maiolino.
Ela voltou para o Rio de Janeiro no começo dos anos 70, determinada a se sustentar e a recomeçar sua carreira artística – agora convicta de que era uma artista brasileira. “Tenho me alimentado dos artistas brasileiros. Acho mesmo que somos antropófagos,” disse certa vez.
Para pagar as contas da casa, Maiolino foi freelancer em várias empresas de tecidos, mas mantinha tempo para sua arte. Desde os 5 anos ela sempre se soube artista, e ao longo da carreira experimentou desenho, pintura, gravura, escultura, fotografia, filme super 8, performance e poesia.
A arte de Maiolino deriva de suas experiências e vivências de imigrante, filha, mãe, mulher, escritora, latino-americana, europeia e brasileira. Rebateu críticas de que sua arte seria ingênua por abraçar temas menores do cotidiano. “Nunca pensei em fazer ‘a grande obra’. Nem passou pela minha cabeça ser uma artista revolucionária. Sempre tive, porém, vontade de fazer uma arte que fosse um reflexo do momento em que vivo. Isso era uma coisa importante para mim e ainda o é.”
É essa verdade e integridade que dão tanta potência à sua arte, e a colocam entre as mais reconhecidas artistas do mundo.
Além da grande sala ANNA, a retrospectiva se divide em outras duas: NÃO NÃO NÃO, com obras que confrontam totalitarismo, censura, e desigualdade, incluindo a celebrada obra Arroz e Feijão (1979) e AÇÕES MATÉRICAS, que apresenta trabalhos com argila, tinta, vidro, concreto e outros materiais que se relacionam de modo táctil e visual.
Obras famosas e caracterizadas pela introspecção e pelas relações familiares – como Por um Fio (1976), em que Anna, sua mãe e sua filha são unidas por um fio de macarrão – poderão ser revistas juntamente com a emocionante e inédita instalação “O amor se faz revolucionário”, baseada nas mães da Plaza de Mayo que perderam seus filhos durante a ditadura militar argentina.
Dá para sentir como cada detalhe da exposição foi pensado com afeto, como Maiolino vive e trabalha. “Me propus que a arte deveria me dar alegria e afeto. Quando você movimenta o afeto, o afeto se multiplica. Mesmo quando faço um trabalho sobre a violência, o afeto me move.”
Nessa linha, Maiolino lembra de Liliana Segre, a sobrevivente de Auschwitz tornada senadora italiana, que certa vez disse, “Resisti porque eu era amada”.
A visita a esta mostra é uma experiência afetiva imperdível que fica em cartaz até 24 de julho.