Parecia uma quinta-feira normal. Daquelas que a gente respira fundo e encara. Meu dia não seria presencial, mas sim de reuniões virtuais e leitura. Preparo e diligência para as reuniões que seguiriam ao longo da semana seguinte.
Não era um dia de receber uma ligação que dizia: “Seu filho foi baleado. E, atropelado”.
Me faltou o chão. Me faltaram as pernas. Me faltou luz. Não sei dizer como, nem em quanto tempo cheguei ao hospital.
A eternidade na velocidade da luz.
Tampouco sei dizer como fui parar exatamente na frente da maca, na sala de traumas, onde ele se encontrava. Deve ser aquela coisa que alguém pega na sua mão e vai cortando caminhos e te coloca no prédio certo, no corredor certo, na sala certa, na hora que precisa ser.
Alguém?
Foi então que vi. O corredor estava lotado de macas, lotado de gente. Atravessei sem olhar para o lado, sem enxergar quem estava ali. Pessoas iguais ao meu filho, que precisavam de ajuda, mas que com menos sorte, oportunidade e recursos, iriam esperar por muito mais tempo do que ele esperou.
Foi então que enxerguei.
A maca. O sangue. Meu filho. Os médicos. Olhei para ele: “Oi mãe”.
A Dra. me chamou: “Foram dois “FAFs” (Ferimento com Arma de Fogo). Ele está estável. Perguntei: “Risco de Vida?” Resposta: “Precisa de cirurgia”. Insisti: “Risco de Vida na próxima hora?” “Ele está estável, mas não se pode garantir”.
Decidi: “Vou transferir”.
Uma vez mais, como tantas outras, ainda que em circunstâncias totalmente distintas, enfrentei a solidão da decisão. Aquela onde a consciência e a intenção de acertar, de fazer certo e o melhor são a única companhia.
Com apoio de todos, e numa velocidade que sequer sei precisar, estávamos na ambulância a caminho do hospital onde ele seria recepcionado por equipe completa: Tórax, Abdômen, Vascular, Neuro. Dois tiros. Uma roda que passa por cima. Um corpo que fica embaixo.
E não morre.
9 horas de cirurgia, e foi então que eu soube: Rafa não havia sido a única vítima da dupla que covardemente o atingiu pelas costas.
O ciclista Vitor Felisberto Medrado havia sido morto pela manhã, bem ali, no Parque do Povo, onde seu único erro teria sido estar vivo, parado, mexendo no celular.
Fomos nós a próxima vítima.
Violência desmedida, inaceitável. Violência que se estabelece com a impunidade.
Mata-se para roubar. Mata-se para desafiar o status quo. Para lembrar-nos da incapacidade da autoridade pública. Difícil continuar passiva diante de uma situação como essa. Que não é única, apesar de meu desejo que fosse a última.
E no mesmo dia em que meu filho foi baleado duas vezes, e atropelado, foi lançado o programa Pena Justa. Aquele que busca a dignidade da pessoa presa.
E a dignidade das vítimas?
Foi preciso uma semana para que eu tivesse coragem de olhar o curativo de uma das balas. Então vi. E a ficha caiu. De novo.
Me fixo no destino, na missão, na mão de Deus. Mas acima de tudo na oportunidade de repensar a vida e reafirmar valores.
Sim, meu filho foi salvo, resgatado de forma impecável, socorrido rapidamente, e está vivo. Mas como podemos seguir sem medo?
Estou descrente do Estado, da política pública, desse universo político unilateral, superficial. Raso. Descrente de sermos, um dia, uma sociedade justa e segura.
Resta-me escrever este testemunho para deixar público o meu repúdio ao que vivemos, meu chamado para que a sociedade possa se mobilizar em prol da segurança pública e contra a violência.
Minha gratidão à solidariedade, à generosidade recebida de tantos que se comoveram ao perceber que, a notícia de toda hora do noticiário, daquela vez era de alguém conhecido.
Andrea Leonel é mãe.
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