Em 2006, José de Souza Pinto (1947-2019), o Padre Pinto, virou um fenômeno midiático ao dançar vestido de Oxum, o orixá feminino das religiões africanas, durante uma missão na Paróquia da Lapinha, em Salvador. Parte dos fiéis e a ala tradicional da igreja se sentiram ultrajados, e a celeuma se agigantou com uma investigação do Vaticano que afastou o clérigo da comunidade à qual se dedicava há 32 anos.
Personagem polêmico e cheio de nuances, o sacerdote é tema do espetáculo Padre Pinto – A Narrativa (Re) Inventada, escrito e dirigido por Luiz Marfuz, em cartaz só até amanhã no Teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo.
“Basta de confundir Deus e religião com opressão,” diz o ator Ricardo Bittencourt, na pele de Padre Pinto, e tal fala sintetiza a mensagem da peça, que tem reunido uma plateia tão heterogênea que surpreende o protagonista.
“O público tem catarses que não consigo explicar”, diz Bittencourt. “As pessoas se emocionam, cantam, dançam, aplaudem e até vaiam como se estivessem interagindo com os personagens.”
A exibição pública que culminou na punição ao Padre Pinto foi o estopim aguardado há anos pelos atentos opositores que discordavam de suas ações junto à população carente. Bailarino, artista plástico e homossexual, Pinto era um sujeito firme em suas convicções, e implantou, às vezes com recursos próprios, obras sociais e culturais, como creches, centros comunitários e as pastorais da fome e da juventude.
Como não se curvava aos dogmas, o religioso incomodava muita gente e, com o coração enfraquecido, morreu em 2019, deprimido em um retiro forçado na Paróquia São Caetano da Divina Providência, na capital baiana. “O seu inconformismo se transformou em revolta, ódio e, quando se deu conta de que o silenciamento era irreversível, desistiu de viver,” observa Bittencourt.
“Não deve haver separação entre o sagrado e o profano: o chamado ‘sagrado’ precisa atingir o que há na rua e iluminá-lo com a graça de Deus,” pregava o religioso. Guiada por esse princípio, Padre Pinto – A Narrativa (Re) Inventada apresenta uma encenação alegórica e pulsante que conversa com o teatro de rua e as folias carnavalescas. Uma banda de três músicos, artistas seminus e a participação do ator Sérgio Marone, como o emissário do Vaticano, reforçam a curiosidade. O grande mérito, entretanto, é tirar do esquecimento um homem que deve ser lembrado como um ser político e comprometido com a luta contra preconceitos religiosos, raciais e sexuais.
Baiano de Coaraci e hoje com 70 anos, o dramaturgo e diretor Luiz Marfuz vive em Salvador desde os 14, mas não conheceu pessoalmente ou sequer assistiu a uma missa de Padre Pinto.
“Tinha o mesmo grau de informação de qualquer pessoa que o descobriu através da mídia,” ele disse ao Brazil Journal.
Provocado por Bittencourt a criar a peça, Marfuz foi a campo aprofundar seu entendimento sobre um personagem que poderia levianamente resvalar na caricatura. “Falar de Padre Pinto é abordar esse mundo de festa, de cores, de explosão, e tratar de política, comportamento e de uma intolerância que esmaga a sociedade até hoje,” disse o autor e diretor.
Bittencourt, um soteropolitano de 59 anos, acumula quatro décadas de carreira e mora em São Paulo desde 2000. Trabalhou com o diretor Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023) em diversos espetáculos, a exemplo de Os Sertões, na década de 2000, e dos recentes Esperando Godot e Fausto, ambos de 2022.
É considerado um dos principais nomes do Teatro Oficina, assim como Sylvia Prado, Luciana Domschke, Mariano Mattos Martins e Tony Reis, todos presentes na atual montagem.
Não à toa, Padre Pinto – A Narrativa (Re) Inventada é permeado pela estética radical e provocativa de Zé Celso e aparece como uma espécie de manutenção do legado do grande encenador, morto em 2023 vítima de um incêndio em seu apartamento.
“Não quero herdar o direito da marca do Oficina, mas acredito que as pessoas me identificam com o estilo do Zé por causa da nossa convivência,” disse Bittencourt. “Tanto que um amigo, na saída de uma apresentação, brincou que no palco parece que eu incorporo mais o Zé que o Padre Pinto.”
Marfuz se sente honrado quando as pessoas enxergam em sua obra elementos das encenações do Oficina. Confessa, porém, que, em tempos de valorização do lugar de fala, ficou receoso de que um elenco majoritariamente paulista diluísse a energia baiana tão necessária para dar credibilidade à história.
“Fiz questão de convocar artistas baianos e, dos quinze que estão no palco, pelo menos seis são naturais de lá. Caso contrário, poderia ficar tão falso quanto atores e atrizes fazendo sotaque nordestino em novela da Globo.”
Com o fim da temporada no Sesc Pompeia, a produção de Padre Pinto – A Narrativa (Re) Inventada estuda oportunidades para se manter em cartaz. Uma possibilidade é o emblemático Teatro Oficina, no bairro da Bela Vista, que desde o ano passado abriu a programação para outras companhias.
“É um palco fascinante e desafiador e, caso seja adaptado para lá, esse espírito de cortejo popular será mais intensificado ainda,” disse Marfuz.
Por se tratar de um personagem transgressor e combativo, Padre Pinto certamente seria muito bem recebido e faria jus às emblemáticas montagens assinadas por Zé Celso naquele endereço ao longo de seis décadas.
The post Padre Pinto ganha o palco (e a plateia) em espetáculo com a essência de Zé Celso appeared first on Brazil Journal.