Quando foi indicada por Joe Biden em 2021 para presidir o órgão antitruste americano – a Federal Trade Commission (FTC) – Lina Khan foi recebida com júbilo, por parte de profissionais da área, críticos à leniente aplicação da doutrina antitruste; espanto, por parte do público, em vista da sua pouca idade, 34 anos, e por ser a primeira mulher a presidir a FTC; e desapreço por parte da indústria, especialmente de tecnologia, pois Khan faria vigilância ferrenha sobre o poder econômico das empresas.
Com seu mandato prestes a terminar, quais lições ela deixa, especialmente no momento em que o Congresso Nacional analisa o PL 2768/22, que trata da regulamentação das plataformas digitais?
De fato, a liderança de Khan implicou uma guinada na política mais benevolente da FTC desde o governo Bush (2000).
A partir de 2021, a FTC passou a ter um papel mais rigoroso sobre o exercício do poder de mercado, prioritariamente com relação às Big Techs.
Como a FTC tem influência, uma ampla querela internacional passou a vigorar acerca de se uma maior intervenção da FTC seria justificável ou benéfica para aumentar o bem-estar social; e qual seria o objetivo do direito antitruste. Nos EUA, contudo, esta contenda já ocorria há anos.
Enquanto Khan estudava Direito em Yale, os EUA discutiam os alcances da política antitruste resgatando suas origens, onde o foco era a preocupação com a concentração econômica e a defesa das virtudes do capitalismo: a liberdade de empreender, de deter propriedade, de escolher e de ter livre arbítrio.
O Sherman Act, de 1890, o Clayton Antitrust Act de 1914, e a criação da FTC no mesmo ano tinham como base combater os trustes, regular condutas empresariais e evitar a formação de negócios que pudessem ferir os princípios da livre concorrência.
Crítica ácida à atuação da FTC, Khan tornou-se ativa nos debates acadêmicos e respeitada pela comunidade antitruste em especial depois da publicação do seu livro O Paradoxo Amazon, em 2017.
Ela defendia que o antitruste deveria ter múltiplos objetivos (como preconizava a escola estruturalista de Harvard), e que sua solução passava por interpretações das leis.
O título do livro é uma referência a O Paradoxo Antitruste, publicado por Robert Bork em 1978. Em linha com a Escola de Chicago, Bork entendia que a finalidade do antitruste é perseguir o bem-estar do consumidor, e que as concentrações econômicas e as restrições verticais podem ser justificáveis se houver eficiência econômica que não seria alcançada de outra forma.
Enquanto Bork questionava o paradoxo de que, na tentativa de proteger a concorrência, a aplicação equivocada das leis podia prejudicar o bem-estar do consumidor e a eficiência econômica (objetivos únicos do direito antitruste em sua visão), Khan indagava o paradoxo de que, na tentativa de proteger o bem-estar do consumidor e a eficiência econômica, o órgão não observava a dinâmica dos mercados, tomando decisões lenientes e controversas por diversas perspectivas (produção, renda, emprego, poder de mercado, etc.).
Para ela, a FTC não acompanhou a 4ª revolução industrial e passou a fazer uma leitura da lei equivocada, permitindo que mercados se estruturassem de forma a prejudicar o interesse comum.
Khan, assim, é uma crítica de Bork e da Escola de Chicago, mas mais importante ainda, ela reprovava veementemente a atuação complacente da FTC.
Para ela, por exemplo, a agência não observou o elevado poder de mercado das Big Techs (como o da Amazon) e permitiu fusões por parte destas empresas, detentoras de elevado poder de mercado, ainda que conglomeral e potencial, e aceitou uma série de condutas anticompetitivas.
Como Tim Wu (que pensa similar a Khan) reconhece, e ainda que possa discordar da visão de Bork, para a Escola Pós-Chicago o objetivo do “bem-estar do consumidor” tem sido mal interpretado e mal analisado, especialmente pela autoridade antitruste.
Ou seja, para estes, não é o “objetivo do antitruste” que deveria estar sendo questionado, mas a “forma” como a FTC entende (ou não) o problema econômico (seja estrutural, seja de conduta) e como esta aplica a lei antitruste.
De certa forma, Bork e Kahn se alinham em dizer que o problema está “na aplicação da lei” pela FTC.
Ao assumir o cargo com o apoio do Partido Democrata, Khan pôs em marcha uma revolução na condução do antitruste pela FTC. De imediato, em 2021, contestou judicialmente as aquisições da Meta, identificando dano das killing acquisitions pela eliminação de um potencial concorrente; e a aquisição da Microsoft, como tentativa de manter poder de mercado no segmento de jogos eletrônicos. Mais recentemente, ela ingressou com ações contra empresas do mercado digital por práticas abusivas e enganosas, e – num sprint final antes da posse de Trump – deve entrar na Justiça, com o DOJ, contra práticas anticompetitivas envolvendo Google, Amazon e HP.
A inovação da abordagem antitruste – tanto de Khan quanto de Jonathan Kanter, o chefe do antitruste do DOJ, que passou a questionar fusões conglomeradas com potencial de gerar elevado poder econômico (e não mais fusões capazes apenas de elevar preços) – passou a vigorar nos EUA, seguindo a tendência europeia de maior intervenção pelos efeitos nocivos dos trustes à economia.
Khan e Kanter procuraram recuperar a noção de concorrência potencial, enfrentando o desafio hercúleo de convencer juízes com a construção de cenários contrafactuais. Se no início a dupla perdia todos os casos no Judiciário, aos poucos começaram a ganhar causas.
Estando a defesa do consumidor também sob sua responsabilidade, Khan adotou noções de “economia comportamental” para questionar hidden taxes – em passagens aéreas, acomodações, ingressos e outros serviços e bens comercializados no mercado digital – e a prática de fishing, que manipula mecanismos de captura da atenção do usuário.
Conquanto as ações pela FTC devam ser desmobilizadas no governo Trump, assim como a revisão metodológica dos “novos guidelines para fusões e aquisições”; Khan deixará marcas na história da condução do antitruste mundo afora.
A despeito das críticas e polêmicas que levanta, não se pode negar que ela mexeu nas placas tectônicas do antitruste, por décadas intactas.
As lições são várias, mas seguem quatro.
A primeira foi ela ter enfrentado com coragem a pressão contrária de grandes corporações, em prol do interesse comum.
A segunda foi ter encarado o debate de um pensamento incumbente com argumentações sólidas, estudos, evidências e objetivos republicanos, sem se deixar capturar (seja pelas empresas, seja pelos políticos).
A terceira foi ter percebido que, como os mercados são dinâmicos, novas tecnologias surgem e, portanto, os órgãos antitrustes precisam se atentar que o poder de mercado pode ser (além de horizontal e vertical) potencial e conglomeral, podendo ocorrer de inúmeras formas.
Por exemplo, se o Facebook permite ao usuário ter seu serviço “de graça”, obviamente não é “preço” o fator de poder de mercado. No caso, o poder é adquirido pela “obtenção dos dados dos usuários”.
A quarta lição foi Khan ter notado que a economia dos dados pode gerar elevado poder para as empresas pioneiras, que podem fechar mercado ou discriminar usuários. Neste sentido, regular dados (como o Digital Markets Act europeu), tal como propõe o Brasil, é fundamental para dirimir o poder de mercado das Big Techs.
Por um lado, Khan tem razão ao questionar uma FTC leniente e pouco efetiva para barrar práticas de grandes conglomerados. Permitir que os grandes trustes (como as Big Techs) fechem seus mercados para concorrentes potenciais (novas fintechs) não traz benefícios sociais.
Por outro lado, se a autoridade antitruste cuidar de garantir que a eficiência econômica se revele pela concorrência – seguindo os ensinamentos de Bork – a FTC cumprirá seu papel, não havendo a necessidade de haver “mais objetivos”.
Como exemplo, nos votos XP-Itaú e Bovespa-Cetip, foram analisadas possíveis condutas anticompetitivas potenciais e conglomerais, à la Kahn, mas objetivando um só ponto: a eficiência econômica, à la Bork.
O legado maior de Khan, assim, é que, ainda que se possa discordar dela (sobre a tese de que um órgão antitruste deva ter inúmeros objetivos) ela, nas entrelinhas, lutou com entusiasmo pelo fortalecimento de uma instituição importante, a FTC.
De fato, como ensinado pelos economistas premiados com o Nobel de 2024 – Acemoglu, Robinson e Johnson – as ações das instituições, que agem com base em interpretações legais, importam para que um país cresça gerando prosperidade compartilhada.
Lucia Helena Salgado e Cristiane A. J. Schmidt são economistas e ex-conselheiras do CADE.
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