Somos o que comemos. ‘Onívoros’ mostra que a comida nos alimenta – e também nos define

“Comida nunca é só comida”, diz o chef René Redzepi em Onívoros, um delicado quitute disponível na Apple TV. Ao longo de oito episódios, cada um dedicado a um ingrediente, o documentário explica e expande essa máxima.

Em torno da mesa, sedimentamos relações com quem nos é próximo: família, amigos, vizinhos, colegas. A comida também nos conecta com a distância, por meio do comércio global que – como mostra o sétimo episódio da série – leva o café produzido em Ruanda para uma cafeteria na Carolina do Norte.

Pimenta, atum, sal, porco, banana, arroz, café e milho são os oito ingredientes examinados em Onívoros. Como não poderia deixar de ser em uma série narrada pelo chef do Noma, o restaurante de Copenhague aclamado como um dos melhores do mundo, alguns episódios apresentam as modalidades mais raras e caras do elemento-tema. É o caso da extração artesanal de flor de sal na ilha de Noirmoutier, uma tradição que se prolonga por 13 séculos e hoje abastece restaurantes de todo o mundo.

As mesas premiadas com estrelas Michelin, porém, são minoria na série. Bem mais frequentes são as refeições familiares. O espectador entra na sala de jantar de uma operária de um centro de distribuição de bananas na Colômbia e de um produtor de milho nos Estados Unidos.  

Essas cenas íntimas contrastam com tomadas aéreas de grande escala, enchendo a tela com a imensa salina no lago Assal, no Djibouti, atravessada por caravanas de camelos, ou com arrozais indianos ondulando sob o vento das monções. O documentário foi filmado em 16 países – e a direção de fotografia é esplendorosa.

Redzepi criou a série em parceria com o produtor Matt Goulding, que já trabalhou em programas de outro chef célebre, Anthony Bourdain. Quando o cozinheiro fala de suas experiências com os oito ingredientes, inevitavelmente acaba fazendo uma discreta promoção de seu restaurante.

Mas o Noma só ganha proeminência plena no final do episódio sobre pimenta. É uma cena leve, divertida: as câmeras registram as reações dos clientes que aceitaram degustar uma pimenta fortíssima. 

Comida não é só comida: também pode virar uma commodity. A série enfatiza a globalização do mercado de alimentos.

O atum, em particular, esteve na vanguarda do comércio internacional de produtos frescos: nos anos 1970, foi o primeiro alimento perecível a ser transportado via aérea, em câmaras refrigeradas, sem congelamento. Hoje, o atum pescado na segunda-feira em Cádiz é vendido em um leilão em Tóquio no dia seguinte e servido na quarta-feira à beira da piscina em um hotel em Bali.

Ao mesmo tempo em que se deixa fascinar pelo que chama de “a moderna rede mundial da comida”, Redzepi se preocupa com as ameaças de nossa voracidade à culinária tradicional e ao meio ambiente. Dentre os alimentos examinados em Onívoros, a banana talvez seja o que mais sofreu com a padronização imposta pelo mercado internacional.

O episódio sobre a fruta mais popular do planeta lembra que existem 1.500 tipos de banana no mundo. No entanto, boa parte das pessoas na Europa e nos Estados Unidos só experimentaram bananas do grupo Cavendish (entre elas, a banana nanica consumida no Brasil).

A expansão de uma variedade única é um problema ecológico sério. Com baixa diversidade genética, bananais inteiros já foram dizimados por um só tipo de fungo. 

No episódio final, sobre o milho, o chef do Noma esboça seu ideal romântico: de algum modo conjugar a produção industrial tal como é praticada nos Estados Unidos – o maior produtor mundial do grão – com a milpa, uma forma ancestral de cultivo praticada no México, na qual o milho é plantado junto com outros vegetais. 

O episódio mais belo da série afasta-se do comércio internacional para contar uma história que se passa em um lugarejo da Espanha. Mantendo uma tradição antiga, todo ano os Embutidos Fermín, uma empresa que produz derivados de porco ibérico, doa um suíno à aldeia de La Alberca.

Meses depois, o animal será sorteado em uma rifa no dia de Santo Antônio. O feliz vencedor poderá devorá-lo. 

Esse episódio atravessado pela melancolia acompanha o porco durante os meses em que ele passeia solto pelo povoado, criando um inesperado vínculo afetivo com alguns habitantes. O dono dos Embutidos Fermín, em especial, exibe uma tranquila dignidade quando diz que preferiria não sacrificar os animais que cria.

A ética do consumo de carne é discutida sem moralismo nem militância. Redzepi, como narrador oculto (este é o único episódio em que nunca o vemos), propõe alguns princípios: criar o animal no campo, não em um chiqueiro estreito, e aproveitar todas as partes comestíveis. 

Porque somos onívoros, ensina Redzepi, devemos respeito aos animais que comemos. A comida nos alimenta – e também nos define.

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